A terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou, na sessão dessa quarta-feira (24), o entendimento sobre a necessidade do laudo toxicológico definitivo para levar a condenação por tráfico de drogas.
O voto condutor, proferido pelo ministro Nefi Cordeiro, chegou à conclusão de que a ausência do laudo gera a absolvição. Leia a íntegra do voto abaixo.
HABEAS CORPUS Nº 350.996 – RJ (2016/0062707-0)
RELATOR | : | MINISTRO NEFI CORDEIRO |
IMPETRANTE | : | DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO |
ADVOGADO | : | DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO |
IMPETRADO | : | TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO |
PACIENTE | : | FERNANDO DE SOUZA GONCALVES |
EMENTA
PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. NÃO CABIMENTO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
- Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado owrit em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia.
- É imprescindível, para a condenação pelo crime de tráfico de drogas, que seja anexado o laudo toxicológico definitivo, concluindo que a falta desse laudo conduz à absolvição do acusado por falta de materialidade delitiva. Precedentes.
- Somente em situação excepcional poderá a materialidade do crime de drogas ser suportada por laudo de constatação, quando permita grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo, pois elaborado por perito oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes.
- A prova testemunhal não tem o condão de suprir a ausência do laudo definitivo, na medida em que somente tem relevância no que diz respeito à autoria e não à materialidade do delito, daí a imprescindibilidade.
- Habeas corpusnão conhecido, mas concedida a ordem, de ofício, para absolver o paciente dos delitos previstos nos arts. 33 e 35 da Lei n. 11.343/2006, a ele imputados na Ação Penal n. 0005247-21.2014.8.19.0016.
RELATÓRIO
O EXMO SR. MINISTRO NEFI CORDEIRO (Relator):
Trata-se de habeas corpus, substitutivo de recurso especial, com pedido liminar, impetrado em favor de FERNANDO DE SOUZA GONCALVES, em face do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Consta dos autos que o paciente foi condenado à reprimenda de 9 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de 1.360 dias-multa pela prática dos delitos de tráfico ilegal de entorpecentes e associação para o tráfico.
O acórdão da apelação negou provimento ao recurso que pleiteava a absolvição por ausência de prova da materialidade diante da inexistência de laudo definitivo da droga, a redução das penas-base ao mínimo legal, o reconhecimento de tráfico privilegiado e o abrandamento do regime.
Alega a impetrante, em síntese, que “O laudo provisório (de constatação) não se presta para comprovar a materialidade do delito quando da sentença condenatória, eis que ele não supre a ausência do laudo definitivo, imprescindível para que se comprove a materialidade do delito de tráfico ilícito de drogas” (fl. 4) e que as penas-base foram aplicadas acima do mínimo legal com base apenas em anotações relativas a processos em andamento, em confronto com a Súmula n. 444/STJ.
Requer, assim, a absolvição do paciente e, subsidiariamente, a redução das “penas base ao mínimo legal, alterando o regime prisional para um mais brando e, se for o caso, em razão do quantum da pena, seja substituída a privativa de liberdade pela restritiva de direitos”. (fl. 6)
A liminar restou indeferida às fls. 59/60. Foram prestadas as informações às fls. 63/65 e 66/77. O Ministério Público Federal, às fls. 87/90, ofertou parecer pelo não conhecimento, ou pela concessão da ordem de ofício.
É o relatório.
VOTO
O EXMO SR. MINISTRO NEFI CORDEIRO (Relator):
O presente habeas corpus foi impetrado em substituição a recurso especial, previsto no art. 105, III, da Constituição Federal.
Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ quando utilizado em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal (HC 213.935/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, DJe de 22/8/2012; e HC 150.499/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe de 27/8/2012), assim alinhando-se a precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 104.045/RJ, Rel. Ministra ROSA WEBER, PRIMEIRA TURMA DJe de 6/9/2012).
Nada impede, contudo, que, de ofício, constate a Corte Superior a existência de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia, o que ora passo a examinar.
Nas razões, a impetrante alega ausência de prova da materialidade por inexistência de laudo definitivo da droga, o que enseja a absolvição do paciente.
Compulsando os autos, verifica-se que o paciente foi condenado à reprimenda de 9 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento de 1.360 dias-multa pela prática dos delitos de tráfico ilegal de entorpecentes e associação para o tráfico, condenação confirmada pelo Tribunal a quo, no que interessa:
“[…] Recurso defensivo que não procede.
Não vinga a tese defensiva de absolvição por carência de provas quanto ao delito de tráfico de drogas.
A materialidade do crime de tráfico de drogas restou comprovada pelo Auto de Apreensão de fls. 13, e pelo Laudo de Exame de Entorpecente de fl. 14, atestando a quantidade e a natureza da substância.
A autoria, de igual modo, se mostrou segura e bastante para a condenação, ante o depoimento, em juízo, dos policiais militares que efetuaram a prisão em flagrante do Acusado.
“Foi o depoente quem realizou a abordagem do acusado e os fatos ocorreram tais como a denúncia os descreve; os indivíduos foram avistados e quando começaram a se dispersar o depoente determinou que aguardassem; enquanto o policial CLERISTON os vigiava junto ao alambrado do campo, o depoente foi até ao local em que eles estavam reunidos quando avistados, no gramado encontrou o entorpecente; nenhum deles admitiu a propriedade do entorpecente; o depoente já conhecia o réu de fotos e de informações de policiais que trabalhavam a mais tempo nesse cidade; o depoente já tinha abordado o réu em ocasião anterior; as informações eram de que réu exercia o tráfico; os indivíduos não reagiram quando foram conduzidos a delegacia.” (Sebastião Ricardo G. Coelho – PMERJ – Testemunha – fl. 142)
“O depoente participou da abordagem dos indivíduos indicados na denúncia e pode dizer que os fatos ocorreram como lá estão descritos; na mesma hora em que eles avistaram a viatura, cada um se afastou numa direção; quem encontrou o entorpecente foi o policial Sebastião; o entorpecente estava no local em que os indivíduos estavam reunidos; o depoente já conhecia o réu e LUCAS; a princípio nenhum deles assumiu a propriedade do entorpecente e diante disso, todos foram conduzidos a delegacia, nenhum deles ofereceu resistência; posteriormente chegou ao conhecimento do depoente que o adolescente LUCAS assumiu a propriedade da droga.” (Cleriston Braz da Silva -PMREJ – Testemunha – fl. 143)
O adolescente L.V.P., em seu depoimento judicial de fls. 145, é categórico ao relatar que:
O depoente estava junto com os demais indivíduos indicados na denúncia quando foram abordados pelos policiais; era o adolescente que estava com o entorpecente e o jogou no chão quando os policiais se aproximaram; o declarante tinha comprado o entorpecente de FERNANDO para revendê-lo; confirma que declarou a Dra. Promotora que iria lucrar R$ 80,00 com a revenda; quando eles Já estavam na delegacia o réu disse ao declarante que iria mata-lo caso o declarante o “dedurasse”; o declarante ficou amedrontado e disse que o entorpecente era seu; aquela era a primeira vez que o declarante estava vendendo drogas a mando do réu e, indagado pelo Juiz, esclarece que não tinha feito o pagamento a FERNANDO até aquele momento, ou seja, o declarante esperava vender o entorpecente, pagar ao réu R$ 100,00, como combinado, e ficar com o lucro de R$ 80,00; havia outros amigos que também vendiam drogas para o réu que foram embora; o declarante não sabe de onde vinha a droga que o réu lhe passou e também não perguntou muito, apenas disse que estava precisando de dinheiro e então o réu disse que ele poderia vender entorpecente de forma que lucrasse; retifica o que disse no MP a respeito de achar que a droga era de FABIANO ARRUDA porque na verdade não acha isso já que o réu e FABIANO não conversavam; já foi ameaçado por familiares do réu, inclusive na própria igreja que começou a frequentar”.
A versão apresentada pelo acusado, quando de seu interrogatório judicial de fls. 147, encontra-se completamente divorciada das demais provas constantes dos autos.
Quanto ao delito de associação para o tráfico, não há dúvida da sua evidência, na medida em que o adolescente “trabalhava” para o acusado Fernando, não sendo crível que os mesmos tenham sido flagrados justo em seu primeiro contato.
A prova não deixa dúvidas de que o acusado, livre e conscientemente, estava associado ao adolescente L.V.P. e outros elementos não identificados, a fim de praticarem a venda ilegal de entorpecentes.
Tese absolutória quanto ao tráfico de drogas, assim como ao crime de associação para o tráfico que se repele. […]” (fls. 43/46)
Pelo acórdão transcrito e pela sentença condenatória (fls. 26/30), constata-se que a materialidade do delito que embasou a condenação do paciente foi apoiada em laudo preliminar de constatação, acostado à fl. 11 dos autos, não tendo sido consignada em nenhuma das decisões a existência de laudo definitivo.
Ocorre que esta Sexta Turma firmou a compreensão majoritária de que é imprescindível, para a condenação pelo crime de tráfico de drogas, a realização de laudo toxicológico definitivo, bem como que a falta do laudo conduz à absolvição do acusado por falta de materialidade delitiva.
Confiram-se os seguintes precedentes:
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. MATERIALIDADE DELITIVA. LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO. AUSÊNCIA. ABSOLVIÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.
- A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou a orientação de que a ausência do laudo toxicológico definitivo não pode ser suprida pela juntada do laudo provisório, impondo-se a absolvição do réu da imputação do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, por ausência de comprovação da materialidade delitiva.
- Agravo regimental improvido. (AgRg no AgRg no REsp 1544057/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 24/05/2016, DJe 06/06/2016)
“HABEAS CORPUS. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. WRIT SUBSTITUTIVO DE REVISÃO CRIMINAL. CONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ACÓRDÃO QUE ANULOU CONDENAÇÃO PELO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS, DETERMINANDO NOVO PROCESSAMENTO DO FATO NO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU, EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO. ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO CRIME. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. CORRÉU EM SITUAÇÃO FÁTICO-PROCESSUAL IDÊNTICA. EXTENSÃO DOS EFEITOS. VIABILIDADE (ART. 580 DO CPP). PENA-BASE DO CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. CONSIDERAÇÃO NEGATIVA DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DA CULPABILIDADE E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. MENÇÃO À FUNÇÃO DESEMPENHADA PELO ACUSADO NA ORGANIZAÇÃO E À RELEVÂNCIA DA ASSOCIAÇÃO, QUE CULMINOU COM O ENVOLVIMENTO E PRISÃO DE DIVERSAS PESSOAS. ELEMENTOS CONCRETOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA. […] 3. Sendo exigência para a condenação pelo crime de tráfico de drogas a presença nos autos de um laudo definitivo referente à natureza e quantidade da droga, a sua ausência impõe não simplesmente a nulidade dos autos, com a reabertura do prazo para a sua juntada ou mesmo produção, mas a absolvição do réu, considerando que não ficou provada a materialidade do delito. Precedentes e doutrina. […] 6. Writ não conhecido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício, para declarar a absolvição do paciente do crime de tráfico de drogas, com extensão dos efeitos a corréu. (HC 287.879/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/8/2014, DJe 2/9/2014).”
“HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE. ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO. INTELIGÊNCIA DO ART. 386, INCISO II, DO CPP. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO WRIT IMPETRADO PELO ACUSADO EM SEU PREJUÍZO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Não admitida a validade da prova pericial e chegando o feito a termo sem a comprovação da materialidade, impõe-se a absolvição do acusado, a teor do art. 386, inciso III, do CPP. 2. Não é adequado utilizar-se de um habeas corpus, impetrado em favor do acusado, para permitir que o Ministério Público traga ao processo uma peça probatória, no caso, o laudo pericial definitivo, que deveria ter comparecido antes da sentença. Inteligência da Súmula nº 160 do STF. 3. Habeas corpus concedido de ofício para decretar a absolvição do paciente. (HC 228.928/RJ, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE), Rel. p/ Acórdão Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PR), QUINTA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 16/09/2013)
É hipótese de prova legal, imprescindível à admissão da materialidade do crime de drogas.
Somente em situação excepcional poderá a materialidade do crime de drogas ser suportada por laudo de constatação, quando permita grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo, pois elaborado por perito oficial, em procedimento e conclusões equivalentes. Esta não é a situação apontada nestes autos.
Ressalte-se, ademais, que a prova testemunhal e mesmo a confissão não possuem o condão de suprir a ausência do laudo definitivo, na medida em que somente indicam a autoria do crime e não sua materialidade – bem podendo o agente, inclusive, ter sido enganado quanto à qualidade de droga do material que possuía.
Desse modo, é de se reconhecer a ilegalidade da condenação em face da ausência de comprovação da materialidade do delito, motivo pelo qual restam prejudicadas as demais teses sustentadas.
Ante o exposto, voto por não conhecer do habeas corpus, mas conceder a ordem, de ofício, para absolver o paciente FERNANDO DE SOUZA GONCALVES dos delitos previstos nos arts. 33 e 35 da Lei n. 11.343/2006, a ele imputados na Ação Penal n. 0005247-21.2014.8.19.0016.